Na Índia colonial, Nova Delhi padecia de uma significativa proliferação de cobras, em muitos casos venenosas e mortais. Para reduzir o número de cobras na cidade, o governo local britânico passou a oferecer uma recompensa, suficientemente generosa para que muitas pessoas começassem a caçar cobras. À medida que a população de cobras diminuía e ficava mais difícil encontrar cobras na natureza, as pessoas passaram a criá-las para continuarem a usufruir desse rendimento acrescido.
As autoridades da cidade descobriram o esquema e cancelaram a recompensa. Em resposta, os criadores de cobras libertaram-nas todas, agora sem valor. No final, o número de cobras em Nova Delhi era superior ao valor antes desta política ser implementada e a consequência não intencional do plano de erradicação de cobras foi um aumento no número desta espécie de réptil. Na tentativa de resolver um problema, o governo acabou por aumentá-lo.
Desde o início da pandemia de covid-19, e a nível global, os bancos centrais com recurso a enérgicas políticas monetárias aumentaram significativamente a massa monetária para tentarem estimular a economia e debelar os impactos negativos do confinamento e do distanciamento social. Esta estratégia tem penalizado as moedas fiduciárias, que são utilizadas pela generalidade da população, mas tem suportado os títulos, desde ações a obrigações e os ativos imobiliários, e estes não estão ao alcance de todas as pessoas.
À medida que os novos casos de covid-19 aumentam para valores recorde, surgem também mais estímulos na Europa, através da aprovação do fundo de recuperação de quase 2 biliões de euros. Nos EUA o congresso ultima mais um pacote de incentivos e a Reserva Federal norte-americana muito provavelmente continuará com o seu “Quantitative Easing” por muito mais tempo, mas dezenas de milhões de pessoas ainda estão desempregados e crescem os receios de que a situação possa piorar novamente, à medida que os programas de assistência atingirem o fim inicialmente programado e de que o distanciamento social continue a penalizar o setor do turismo, os bens discricionários, restauração e hotelaria.
O ouro está em máximos históricos, muito perto dos 2000 dólares por onça, e continua na sua senda dos ganhos como forma dos investidores se protegerem contra a depreciação das moedas fiduciárias. As principais moedas mundiais estão agora mais vulneráveis ao ouro e estão a ser preteridas pelos investidores que preferem o metal amarelo à medida que as taxas de juro subjacentes às moedas fiduciárias se aproximam de zero, para combater a crise económica e estimular o investimento, não tendo neste particular qualquer diferenciação em relação ao ouro que não gera rendimento, apenas ganhos de capital.
No entanto, o refúgio ouro é uma excelente proteção contra a hercúlea criação de dinheiro pelos bancos centrais e não é utilizada pela população em geral devido ao baixo rendimento disponível, ao aumento do desemprego, e por vezes à falta de literacia financeira.
Também os máximos históricos de muitas ações tecnológicas, desde a gigante germânica de software, a SAP, à norte-americana Microsoft, não estão a beneficiar a população em geral, mas a premiar quem investe em ações, quem tem rendimento disponível para o fazer e quem tem conhecimentos financeiros.
Alguns conflitos sociais a que temos assistido, nomeadamente nos EUA, podem ter a sua génese nas políticas acomodatícias, que têm como objetivo primordial minimizar os danos causados pelo desemprego e pela contração económica na população em geral, mas acabam talvez por agudizar as disparidades sociais e redundar num agravamento do índice de Gini.
Poderá a criação de dinheiro redundar num mal
maior que o projetado inicialmente pelas autoridades? Podemos estar perante um
efeito “cobra” ao nível dos estímulos monetários?
Paulo Rosa, Vida Económica, 31 de julho 2020
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