A perspetiva de depreciação do dólar pode ser enquadrada pelo regresso dos défices gémeos. Um elevado défice da balança corrente e das contas públicas nem sempre se traduz numa descida do dólar, mas desta vez a probabilidade é maior. O défice comercial está perto dos máximos históricos de 2006 e o orçamental em valores históricos de 130% do PIB nominal, que, aliados à política monetária energicamente expansionista, poderão gerar inflação acima dos 2%, tal como a Reserva Federal norte-americana (FED) pretende, mas, a existir alguma inflação, muito provavelmente, será apenas moderada e no limite entre 3% e 5%. Não se espera que os EUA ofereçam taxas de juros ou diferenciais de crescimento que atraiam as poupanças mundiais face ao potencial de crescimento que poderão apresentar as economias emergentes a partir da segunda metade de 2021.
Alguma correção de uma parte do défice comercial poderia ser via depreciação do próprio dólar, mais plausível através das importações. À medida que a moeda norte-americana desvaloriza, as importações ficam mais caras e menos atrativas, no entanto, as exportações norte-americanas poderão não beneficiar da desvalorização do dólar devido à mudança de paradigma espelhada na divisão do comércio mundial num conjunto de blocos com as suas próprias cadeias de abastecimento. As crescentes dificuldades para a balança de capitais dos EUA contrabalançar as perdas comerciais poderão ser ultrapassadas pela desvalorização do dólar e reequilíbrio da balança de pagamentos que tem sempre saldo zero.
As taxas de juro de longo prazo do dólar, ou seja, as rentabilidades das T-Bonds, estão abaixo de 1% e aquém do esperado crescimento económico mundial refletido na subida das cotações das matérias-primas, nomeadamente do cobre, que regista máximos de 2013. Ou as taxas de juro sobem para patamares pré-Covid acima dos 2% ou a atratividade do dólar estará na sua depreciação. O renminbi poderá ganhar terreno à hegemonia do dólar se hipoteticamente assistirmos a uma significativa desvalorização do dólar que no período de 2000 a 2008 se traduziu num ganho da moeda europeia de 10 pontos percentuais nas reservas mundiais dos bancos centrais. Agora o mesmo poderá acontecer, mas algum percalço em termos políticos na União Europeia, nomeadamente advindo das eleições regionais em França ou das legislativas na Alemanha e na Holanda, pode acarretar uma perceção de menor coesão europeia e, consequentemente, depreciação do euro.
À medida que as oportunidades de investimento global melhoram, o dólar como ‘porto seguro’ perde terreno. A inflação nos EUA também pode aparecer em 2021, caso a procura ultrapasse as atuais restrições de oferta induzidas pela pandemia em muitos setores, mas este facto é pouco provável face à elevada taxa de desemprego norte-americana, à diminuição do peso dos salários no PIB e ao estrutural excesso de capacidade instalada. Quanto maior for o apetite pelo risco do investidor, maior será a probabilidade que o dinheiro flua dos EUA para os mercados emergentes. Uma melhoria dos mercados emergentes na segunda metade de 2021 proporcionará uma maior aceleração de muitas “carry trades” que usam o dólar americano como moeda de financiamento. O dólar pode continuar a cair na crença de que a Reserva Federal seja o último banco central a encetar uma política monetária contracionista, com exceção da Europa, do BCE e do BoJ, e os mercados emergentes aumentarão provavelmente as taxas mais cedo.
Biden quer voltar rapidamente ao pleno emprego e para isso terá que criar mais de 5 milhões de empregos suportados, talvez, por outro pacote de estímulo orçamental monetizado pela FED, atualmente de 80 mil milhões de dólares mensais de compra de dívida pública, quase um bilião de dólares num ano, além das atuais compras de 40 mil milhões mensais em títulos de hipotecas garantidas (MBS) que aumentam significativamente a base monetária e podem impactar a inflação. O resultado das eleições para o Senado da Geórgia a 5 de janeiro determinarão a escala deste hipotético pacote. As atuais sondagens apontam para uma vitória dos democratas, o que daria a Biden luz verde, já que o seu partido controlaria o Congresso.
VIDA ECONÓMICA | 31-12-2020 | PAG 33