As criptomoedas relançaram a secular discussão entre qual é a melhor alternativa para o sistema monetário mundial: moeda-mercadoria ou moeda fiduciária. Este debate reaparece pela mão da Bitcoin (BTC) durante a grande recessão de 2008-09 como resposta ao atual sistema de reservas fracionárias no qual assenta a moeda fiduciária. A Bitcoin é uma mercadoria (digital) e o dinheiro, atualmente, é dívida. É um debate de economia política entre os benefícios de mais ou menos liberalismo económico e mais ou menos intervenção do Estado.
A moeda fiduciária não tem valor intrínseco, não é garantida por nenhum metal e
o seu valor resume-se à confiança das pessoas e ao seu curso forçado. Todavia,
a moeda fiduciária estimula mais crescimento económico via endividamento, mas
há uma probabilidade acrescida de aparecimento de inflação indesejável. A moeda
mercadoria não permite criação de moeda pelos bancos centrais, porque não podem
“imprimir” ouro ou gerarem mais moeda digital, e a inflação estará sempre
controlada do lado da oferta monetária, mas uma crise financeira provavelmente
será mais difícil de ultrapassar. Os detentores de moeda mercadoria podem
recusar-se a ceder crédito, e, consequentemente, projetos de interesse
relevante, espelhados em mais trabalho produtivo e bens e serviços de crescente
utilidade, podem ficar para trás, implicando menos crescimento económico e
menor maximização do bem-estar da população.
Atualmente, na resolução de uma crise financeira, a criação de dinheiro pelos
bancos centrais tem bastante mais anestesia do que uma intervenção direta das
autoridades, de dimensões monetárias provavelmente semelhantes, mas que
passasse pela cobrança de mais impostos para suportar um fragilizado sistema
financeiro. Uma reabilitação do sistema financeiro através de nacionalizações
assumiria proporções ainda mais gravosas para a credibilidade do país, interna
e externamente, e afastaria muitos investidores. Por isso, muitos economistas
defendem a moeda fiduciária para impulsionar a atividade económica.
Hoje em dia, os défices orçamentais são gradualmente monetizados pelos bancos
centrais e a independência destes é cada vez menor. No Japão, há mais de 20
anos que o governo acumula uma dívida pública crescente em resultado dos
sucessivos défices orçamentais. Na União Europeia, os Estados assumem cada vez
mais os gastos na economia e nos EUA os sucessivos pacotes orçamentais de
estímulo à economia penalizada pela pandemia corroboram esta tendência.
Recentemente, a Teoria Monetária Moderna (MMT) reavivou o tema do financiamento
direto do Estado através da criação de dinheiro e reforçou a política
despesista dos Estados, cujo limite para incorrer em crescentes défices
orçamentais é determinado apenas pelo aparecimento de inflação indesejável. Esta
teoria implica a perda total da independência dos bancos centrais e relança o
debate entre quem gere melhor o dinheiro: os tecnocratas dos bancos centrais ou
os responsáveis governamentais eleitos de 4 em 4 anos.
O criador da BTC talvez tivesse o propósito de uma moeda-mercadoria digital, descentralizada
dos bancos centrais, para afastar a moeda fiduciária keynesiana que rege o
sistema bancário há 50 anos, desde a queda do padrão ouro em 1971, com o final
do sistema de Bretton Woods. Os bancos centrais enfrentam um dilema: se por um
lado querem responder à crescente concorrência da BTC, e outras altcoins, a
adoção de uma moeda digital (CBDC) implica abdicar do poder de impulsionar e
reequilibrar a atividade económica e de resolução das crises.
Será uma moeda cripto descentralizada capaz de cativar mais
que uma moeda cripto suportada por uma economia pujante? Os entusiastas das
criptos liberais acham que sim.
Uma hipotética deterioração das moedas fiduciárias nos próximos anos,
penalizadas pela enérgica criação de dinheiro e crescente monetização das
dívidas públicas, pode reforçar uma moeda-mercadoria, agora digital, como nova
referência mundial. O e-dólar, o e-euro e o e-yuan são os grandes candidatos, a
par da BTC. A crise pandémica relançou a discussão sobre o regresso ao padrão-ouro. Nos EUA, os
republicanos trazem este tema à colação de vez em quando…
Paulo Monteiro Rosa, 19 de março de 2021 In Vida Económica
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